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  • Foto do escritorLuciana Garcia

MODERNIDADE LÍQUIDA, IMEDIATA E DESREALIZANTE

Atualizado: 23 de jun. de 2021






SPOILER ALERT: este não é um artigo recente, mas a reflexão continua atual.


Estava escrevendo um artigo e pensei em usar a palavra “recentemente” na primeira


linha. No exato momento em que essa palavra me veio à mente, logo surgiu um pensamento: o que é "recente" hoje em dia? No dicionário recente é a característica de algo que é fresco, novo, um fato que tem pouco tempo de existência. Porém neste nosso mundo virtual, fica um pouco mais complicado.

Pesquisando rapidamente no Google em “notícias” você percebe que a maioria dos jornalistas usa o termo para se referir a algo que aconteceu até 3 meses atrás, no máximo. Porém nas redes sociais, não se passam 2 minutos sem que um fato novo chegue ao seu conhecimento. Tudo que se posta virou acontecimento.

E nós, “rolando tela” o dia todo, nos acostumamos com isso. Esse movimento, criado pela impressão que apps e sites de interação social usam, faz com que tenhamos a sensação de que a todo momento está acontecendo algo novo. A sensação que fica é de que ao tirar os olhos da tela iremos perder alguma coisa. De fato, o tempo todo acontece algo no mundo. Mas daí a dizer que isso seja de fato notícia, é outra coisa.

No jornalismo, se estabelecem critérios para que o repórter possa julgar se determinado evento é ou não notícia. Eles são basicamente 4: novidade, proximidade, tamanho e relevância. E aqui entra uma pegadinha: quanto mais novo, mais relevante; quando mais próximo de mim, mais relevante; quando maior a abrangência ou o número de pessoas envolvidas, maior a relevância. Mas relevância é outra coisa! A relevância como quarto tópico dessa classificação noticiosa, está relacionada por parte de quem recebe a notícia, (do leitor, ouvinte ou espectador) com o diferencial que essa informação vai ou não fazer na sua vida.

Trocando em miúdos: de quê me importa isso? Com essa verdadeira adição às redes sociais, nós estamos invertendo a pirâmide da notícia, de uma forma muito sinistra. Começamos a achar que tudo é importante, porque há uma dificuldade coletiva de separar informação de conhecimento. Informação não é conteúdo e não é conhecimento. E pouca gente tem essa clareza.

Se pararmos friamente pra pensar no assunto, chegamos muito rapidamente à conclusão de que as palavras com significado muito parecido entre si são criadas para trazer àquele significado uma nova acepção que a palavra anterior não compreendia. Mas como assim?

Calma, vamos desenrolar isso. Imagine que existe um espaço. Esse espaço, é preenchido por um conteúdo. E desta perspectiva, quase tudo é conteúdo. CONTEÚDO É O QUE PREENCHE. Uma informação, ela é dotada de conteúdo. Porém, o conteúdo da informação é algo específico, e dentro das limitações da sua especificidade, ela te traz ou não algum conhecimento. Conhecimento não é necessariamente notícia! Ele pode ser noticiado, no momento em que acontece a descoberta de algo (como a fórmula de uma nova vacina) – mas depois disso, sem outras novidades, não é mais notícia.

Vamos pegar aqui uma manchete fictícia: O cantor fulaninho se casa em meio à pandemia. Muito bem. Parabéns pra ele. A partir dessa manchete, eu percebo que isso não é notícia e se trata de uma mera informação. Pessoas se casam todos os dias, muitas pessoas estão se casando durante a pandemia, nada de novo. Se eu for muito fã de fulaninho, essa manchete pode até ser título de um FATO que para mim, como fã, agrega CONHECIMENTO a respeito de uma personalidade da qual eu acompanho o trabalho, mas isso não é notícia. Se eu não curto o trabalho do cantor, esse conhecimento não me serve pra nada, é uma informação irrelevante. Ok, acho que você entendeu bem até aqui.

O dilema das redes sociais – tema inclusive de um instigante documentário disponível na Netflix – é que elas subverteram conceitos básicos, como a palavra “recentemente” - e isso está nos fazendo muito mal.


Essa questão tem suas raízes mais profundas plantadas no jornalismo comercial na forma com que foi concebido e praticado até então. Vou usar nessa analogia o tradicional jornal em papel pra não precisar fazer muitos desdobramentos. Vamos lá: o jornal em papel, o clássico, é composto de folhas dobradas ao meio, que formam 4 páginas. Então já partimos do princípio de que, caso eu tenha conteúdo jornalístico para apenas 3 páginas, ou eu preencho essa quarta página com artigos, tirinhas em quadrinhos, horóscopos, etc, ou preciso ter um anúncio. Em geral, eu já vou ter anúncios em todas as páginas (ainda que somente o rodapé) porque é isso que faz a máquina girar. Nenhum problema com anúncios até aí, porque eles fomentam a disseminação do conteúdo de informação. Mas desde que o jornal tomou corpo até seus tempos áureos nos anos 80, o que vimos foi um avanço agressivo da propaganda em detrimento do conteúdo.


A lógica do capital fez tantas e tantas vezes jornais tirarem o “par ou ímpar” pra saber qual matéria sairia daquela edição para que pudesse entrar tal anúncio. Quando chegou a internet, quem acompanhava de perto esta área da comunicação pensava: até que enfim as coisas vão melhorar! Com a virtualidade do espaço, podemos nos alongar ou não, podemos postar somente o que é pra ser divulgado, que ótimo! Só que não. A lógica dos clickbait fez das Chamadas verdadeiras fotografias de cardápio de restaurante, obrigando que a atratividade se sobrepusesse à realidade, ao conteúdo em si.

Esse conhecimento fez um uso muito torpe da psicologia e da neurociência para nos transformar em apertadores de botão do século XXI.

Botões virtuais, desta vez, mas ainda botões. A lógica levantada no documentário da Netflix é muito pertinente, porém ela sempre existiu. Somente agora é que estamos de fato entendendo o consumidor como o produto em si. Como aquele final de filme em que você descobre que o protagonista estava morto o tempo inteiro. Há uma frase popular da imprensa old school que diz “nada mais velho que jornal de ontem”. Essa lógica se transferiu para o mundo virtual, porém agora, de maneira avassaladora. Entre uma edição de um jornal impresso e outra, existiam 24h. Entre o jornal televisivo da manhã e o do almoço, 6 horas. Notícias no rádio? A cada meia hora. Porém agora, na modernidade líquida, na pós-verdade desrealizante, o velho tem o prazo de validade de uma respiração. Dentro de todo esse contexto contemporâneo, recentemente é uma palavra mais estranha que o próprio “jornal de ontem”.

Na perspectiva da informação e do conteúdo da forma com que isso é apresentado hoje, o tempo está deixando de existir. Logo, as formas “antigas” que dispúnhamos para medir o tempo também estão se esvaziando. Ainda que a ciência e a medicina estejam trabalhando arduamente para reverter isso, o tempo biológico ainda existe. E em virtude disso estamos sendo exterminados pelo metralhamento de informação das redes. O grande problema disso? O tal documentário foi lançado “recentemente”, mas assim que você acabar de ler este artigo, já será notícia velha.



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