Acredite você ou não na mitologia cristã essa alegoria bíblica do título exemplifica muito bem a importância da palavra como veículo de tudo o que há. É através da palavra que expomos o nosso pensar. Diferente de outros animais, somos capazes de exprimir pensamentos complexos por conta da nossa linguagem sofisticada, com 435 mil verbetes (só na língua portuguesa), que se encadeiam e se agrupam formando conjuntos que podem se transformar em desejos, pedidos, avisos, lembretes, aconselhamentos, teorias, postulados, orientações, poesia e até música.
A palavra é o primeiro respiro da ideia fora da cabeça. Junto a outras palavras, ela vai se alinhando e dando forma aos mais incríveis pensamentos. Juntas, as palavras, alinhadas e encadeadas num maravilhoso ballet linguístico formam a argila do pensar. Ela se deriva em fala, em texto, em linguagem. Estudos recentes ligados às neurociências, levantam a hipótese de que a própria memória, a nossa capacidade de acumular uma grande quantidade de informações no cérebro, está ligada ao desenvolvimento da linguagem. Sem ela seríamos incapazes inclusive de nomear as nossas recordações.
Não é à toa que a palavra tem tão importante papel na história da humanidade. Tendo criado Deus à nossa imagem e semelhança foi somente através da palavra que pudemos começar a nos organizar socialmente.
O desenvolvimento da linguagem (aliado à fantástica aquisição do polegar opositor) fez com que fôssemos capazes de compartilhar nosso conhecimento com outros humanos, de passar a nossa história adiante e assim caminhar a largos passos para uma evolução social mecanizada e complexa. Então, se a palavra, se a linguagem, tem tão importante papel em nossa jornada civilizatória, por que damos tão pouca importância à comunicação? Por que estamos ainda tão pouco preocupados com a nossa escassez de recursos e ferramentas para melhor expressar o nosso sentimento, as nossas emoções, os nossos pedidos ao outro? É possível que sejamos assim tão limitados a ponto de pensar que estamos indo bem?
Desde o renascimento aos tempos atuais, fomos cada nos desapegando de regras e métricas para que a nossa comunicação ficasse mais simples e direta, menos rebuscada, acessível a todos. Passamos a nos sentirmos mais à vontade para viver nossas vidas fora de normas e preceitos sociais, e começamos a nos despir de pudores linguísticos. Um “filha da p*!@” hoje não soa assim tão pesado quanto em 1900. O pensamento ganhou mais liberdade. Já a comunicação não ganhou nada. Estamos cada vez mais colecionando atritos, desafetos, ex-amores.
É inegável que as redes sociais e a facilidade de se vomitar ideias aos quatro ventos corroborou (e muito!) para a nossa situação atual. Mas será que somos verdadeiramente incapazes de tolerar o diferente, ou talvez a nossa comunicação tenha estacionado no tempo e não atenda mais às nossas necessidades?
Precisamos desenvolver nossas habilidades para que sejamos capazes de compreender e alcançar a humanidade do próximo. Para isso, veio em nosso auxílio de forma brilhante Marshall Rosenberg e sua Comunicação Não Violenta. A ferramenta de Rosenberg data dos anos 70, mas parece que somente agora começa a ganhar corpo e espaço neste país sul-americano.
A CNV é imprescindível para que possamos acolher o que o outro nos tem a dizer sem julgamentos, de peito aberto, e com a chama Escuta Empática. O grande desafio da Comunicação Não Violenta está justamente aí, na tal da escuta. A partir do momento em que eu deixo de ouvir o outro, a partir do momento em que eu me fecho para o que o outro está trazendo, a comunicação começa a falhar. Essa escuta tem que ser presentificada – que nada mais é do que ESTAR NO MOMENTO PRESENTE.
Geralmente quando uma outra pessoa está nos falando algo, saímos da temporalidade e mergulhamos no nosso pensamento em busca de situações similares e respostas imediatas. Com isso, uma série de informações importantes da fala do outro vão se perdendo no caminho. Coisas que estão além das palavras (mas que também comunicam) passam despercebidas, como: o tom da voz, uma hesitação em determinado momento, um olhar um pouco perdido... Todas essas coisas nos trazem dados importantes que agregam valor e sutileza àquilo que o outro está nos trazendo. Dados que vão ralo abaixo com a descarga dos nossos pensamentos.
No princípio era a palavra? Pois bem, creio que já tenhamos avançado um pouco, não é?! Agora, é necessário que escutemos os conflitos internos que se encavalam detrás das palavras proferidas. Olhar para aquilo que o nosso interlocutor teme, tem vergonha de expressar ou simplesmente não sabe pedir. Por trás de cada pedido, há uma necessidade que não foi atendida. Por trás de cada necessidade, há um sentimento latejando.
Exercícios de respiração com atenção plena podem nos ajudar a encontrar o nosso centro, sair da velocidade do mundo externo e nos encontrarmos com a nossa verdade, com a nossa essência. Nesse lugar de presença e atemporalidade, conseguimos nos projetar para fora do acontecimento e observar, sem julgar, os dois indivíduos que participam do diálogo e seus desejos. Consciente dos meus desejos e dos desejos do outro, aí então serei capaz de, como diria Plínio Marcos, “adentrar no pequeno núcleo macio da sua sensibilidade” e conduzir um diálogo da melhor maneira possível. Com este esforço, estaremos caminhando para uma sociedade mais empática, onde haverá lugar e respeito ao diferente e as diferenças. Afinal, estamos em 2021. No princípio, era a palavra. Então, fez-se a luz.
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